Copos D'água

Copos D'água

28 de fevereiro de 2014

Outono.

As folhas ainda estavam verdes quando haviam se conhecido. Debaixo de uma copa acolhedora e alguns galhos retorcidos, ele a tocou pela primeira vez e murmurou duas ou três frases sobre a imprevisibilidade do Universo e do amanhã. Do lado de fora desse mantra particular, uma brisa anunciava uma primavera que vinha fincar raízes através de um olhar e um beijo demorado.
A Natureza sempre fora refúgio dos amantes e das maiores paixões, então, porque não, daqueles que mal sabiam que tinham dentro de si alguns de seus frutos?
Aquele pedaço de terra no meio de um passadouro em puro concreto havia virado um santuário ao ar livre, que abrigava de tempo em tempo os encontros desses cúmplices de alma, que doavam um ao outro oxigênio, e asas.
Voaram.
Foram voltar sabe-se lá quantos outonos depois, a árvore via-se nua, com suas forças e ramos no chão, como uma manta amarela de folhas secas e despedaçadas. Já não eram mais os mesmos e podiam dizer pelo olhar. Calaram. Suas mãos tocaram-se mais uma vez, como se fosse a primeira, e esse reencontro de almas se firmou com as raízes devastadoras que haviam crescido dentro de si mesmos, durante todo aquele tempo. As folhas caíam da árvore, do céu, e naquele momento, ambos tinham consciência de suas asas, mas só sabiam querer permanecer ali.

29 de janeiro de 2014

Solstício

São os detalhes irrisórios de cada anoitecer. O clique da porta quando sua hora chega, o seu espaço na cama, intocado, com o travesseiro ainda escondido pela coberta. Nenhuma roupa jogada no chão, sem provas, nem restos da sua presença. Um relógio sem ponteiros, que arrasta a vida até o próximo dia e um solstício de inverno, pra tornar a madrugada eterna e fazer seu cheiro desvanecer.

21 de outubro de 2013

Tuas pupilas

Não me culpe, se meus olhos parecerem distantes ou se suas mãos falharem em procurar as minhas, ao despertar. Eu tinha me feito uma promessa, mas mais uma vez, me surpreendi traindo a mim mesma..
Achava que havia descoberto a fórmula exata do equilíbrio, mas andei numa corda tão bamba nos últimos tempos, que meu trilho perdeu o foco e já não me parece tão visível.
Eu tinha entrado num acordo com o universo, de que ele me daria minhas próprias asas, e cada sopro de vida passaria ao meu lado como o vento passa pelas folhas, sem pretensões, sem ritos, nem apego. Foi meu o desengano, quando me vi tomada pelo sufoco e querendo te sugar pra dentro mim, como se isso fosse devolver por completo o ar dos meus pulmões. Que tropeço.. Eu achar que havia me encontrado dentro de ti é que me trouxe toda essa ruína.
Por tudo isso, por favor, não me culpe. É que eu preciso me alimentar de outros corpos e de mim mesma, pra eu conseguir sobreviver ao meu amor por você.

5 de março de 2013

Poeira.

Me entrego a ti por partes.. E sempre subitamente, partes tão pequenas, nos deslizes da nossa racionalidade. Quando me arrepia a espinha o som da tua voz, teu olhar que me despe e teu sorriso. Ah, teu sorriso! Como um sorriso tão doce e contido pode me rasgar dessa forma tão invasiva por dentro? Tua boca me atacando com as palavras mais suaves, e me dói, tanto.
_ Parece que o mundo vai explodir um dia, se eu finalmente te ter..
_ Que exploda, eu digo, que exploda. Em um trilhão de pedaços, que sejam tão ínfimos e se misturem pelo ar, nossos átomos rodopiando e entrelaçando o que eram pedaços das nossas pernas, o que restar das mãos, tuas mãos nos meus cabelos, e vamos poder dizer a plenos pulmões que por todo lado dançamos, enquanto o mundo acabava em poeira.

23 de agosto de 2011

O momento decisivo.

Uma 20×25, em preto e branco, fosco. Ana olhava para aquele pedaço de papel com brilho nos olhos e um leve suspiro. Para qualquer pessoa, aquele retrato não significava absolutamente nada e tudo que poderia representar, se observado com a mínima empatia, era um afeto casual de namorados (como aqueles que se encontra em todas as esquinas e mesas de cafés).

Ela sabia, porém, que Cartier-Bresson previra o momento daquele retrato muito antes de ele acontecer, e que ele não era nada casual. Era o “momento decisivo”, aquele segundo antes do beijo, o silêncio absoluto antes de uma frase e a falta de ar diante do abismo. Sua importância era imensurável, e ela se sentia aliviada por ele também saber disso.

26 de abril de 2011

All in

Ela tinha um leque de cartas na mão e a cara de quem escondia um bom jogo. Precisava de no mínimo uma trinca de seis e se manteria na aposta, depois daquele "fecha os olhos e all in". Uma garrafa de whisky pela metade e a aliança de ouro na mesa, entre ases e reis, amenizavam a podridão daquele hotel meia-boca beira-de-estrada. Era tanta fumaça numa semi-escuridão e tantas cinzas cobrindo o piso, que vira e mexe se escutava um "Diabos!!", vindo dos cantos do pequeno hall, seguido de um estardalhaço de cadeiras e copos indo pro chão.
Era a única mulher no meio de machos beberrões, mas se sentia a vontade sentada ao lado daqueles zé-ninguém, naquele fim de mundo. A sensação de um universo inteiro desconhecido lhe era no mínimo confortante, por saber que ali ela não era mais do que uma passante, desconhecida, e que não devia nada a qualquer um.
Ana havia sumido de casa há alguns dias, desde a última briga com o seu marido, e ainda levava as marcas na mão e o curativo do soco que a fez quebrar o espelho do banheiro. Aquela noite de domingo tinha sido uma das mais angustiantes desde o começo de sua vida de casada e a tinha feito decidir que aquele não era o futuro que queria pra si. Vira e mexe, sentia falta do seu desprendimento e inconsequência, das bebidas e do sexo casual, além de achar que seu amor nunca seria suficiente. Pegou a mochila e decidiu fugir, pra sabe-se lá aonde...
Não havia ainda parado pra raciocinar sobre o que havia feito desde então, mas ao olhar seu dedo vazio na mão esquerda e a aliança jogada na mesa, valendo tanto quanto alguns maços de cigarros, deu-se conta do que estava acontecendo.
Eram duas da manhã e o vento que vinha de fora sussurrava uma madrugada mais que gélida. Ana contava com a sorte... Mas ainda não sabia se queria perder ou ganhar.