Copos D'água

Copos D'água

3 de novembro de 2010

Lado B.

Escancarou a porta num um rangido estridente, entrou em casa deixando pegadas molhadas no assoalho e arremessou a bolsa de qualquer jeito no sofá. As maquiagens baratas, algumas tantas moedas trocadas e o maço de cigarro foram todos parar no chão da sala. Ninguém se importaria com isso agora, eram onze e meia da noite daquele domingo rastejante e tudo que Ana queria era se lavar, esticar suas pernas fadigadas na cama e desmaiar, sem raciocinar sobre como havia sido o seu dia ou como havia de ser o seguinte.
Ele veio da cozinha e entrou no banheiro mal iluminado, de onde achou que havia escutado um barulho. Ela o olhou de relance pelo espelho embaçado e continuou guardando suas lentes de contato, jogou tanta água no rosto que parecia querer se afogar ali mesmo na pia e afundou a cara na toalha, enquanto ele resmungava algo sobre dor de cabeça, batata frita e Robert Johnson. Ela não pediu licença e passou por ele pela porta, sem encarar os olhos azuis que procuravam em desespero o encontro com os dela, desde que havia chego. Ela sabia que se entregava por ele num olhar ou num sorriso qualquer, como uma adolescente idiota que ainda não sabe que é nessa rendição ingênua que mora o diabo, então procurou se refugiar na apatia que a impedia de querer qualquer contato.
Sentou-se na cama e arrancou fora os sapatos e as roupas, como se estivessem lhe causando repulsa, e  vestiu uma camiseta velha dele, a primeira que alcançou na gaveta, como sempre fazia. Dessa vez, era uma cinza desbotada, com um furo na manga esquerda, dos Rolling Stones e de tecido roto, que só tinha na frente um logo vermelho já quase apagado.

"When the train, it left the station 
with two lights on behind
When the train, it left the station
with two lights on behind

Well, the blue light was my blues
and the red light was my mind,
All my love's in vain..." - tocando na vitrola poeirenta da sala.

Ele questionava sobre o dia dela, enquanto discorria sobre seu café amargo e pão francês quando ainda era quase escuro, a caminhada solitária pelo parque com chuvisco, um cachorro manco, angústia estranha no peito e... silêncio. Ana nada dizia.. O timbre maldito daquela voz sempre lhe foi doce demais, o que nessa hora era insuportável. Virou de lado, fechou os olhos e viu um flash de pernas entrelaçadas e pingos de suor...

Ela haveria de tomar um banho, e ele, umas várias doses de whisky.